15.4.09

Óculos

Tinha um cordão marrom e já parecia um artefato vivo, cheio de escamas que contavam minuciosas estórias. Movia-se na esfera atômica sob um céu de nuvens, látex, plástico, cobre ou qualquer que fosse aquela matéria estranha. Era triste, parecia póstumo, plural, aquele objeto morno, esquecido: óculos.

Contava histórias...Tantas histórias suportadas, sorrisos de cílios, dança de sobrancelhas, músculos faciais atentos, suspiros de estagnação e tédio, sol vigorante, e chuva fina de cidade grande, seres móveis, pensantes, bocas sonâmbulas, ósculos apaixonados. Ah, tudo estava contido ali, naqueles óculos morenos de ferrugem.

Objeto vivo, pensante (como saberemos?). Os óculos não falam, são nobres porque sabem guardar segredos, passado, presente e lentes que verão o futuro. Guardavam o mundo refletido em seus espelhos, eram tristes e atados a um cordão de látex coagulado. O cordão era vagabundo, mas os óculos eram sábios... Pareciam árvores do cerrado, eram óculos morenos, para olhos morenos e doíam.

Que mistério guardariam as lentes daqueles óculos, noivos de tantos globos oculares, plasmas e íris pusilânimes que acarinhavam as almas! Córneas úmidas, fluviais, plúmbeas, frágeis de sensações. Os olhos se fecham e as lentes continuam a tudo observar. Lentes e olhos são oráculos, bem sabem que o ser que vive gosta mesmo é da luz parindo no escuro de tudo (para aclarar o breu das almas?). E como era forte o segredo da luz!

Aqueles óculos sabiam as respostas. Aquilo que somos humanos demais para entendermos eles sabiam mudos. As lentes ouviram o destino infeliz de uma Eva inútil, e viram as rodas que esmagaram o verme-estrela em sua hora. Os óculos teriam visto vênus, serpentes, formigas, poros grossos, poeiras, poetas, construções cinzentas, sóis, céus e estrelas. Teriam guiado cavaleiros e suas malas, guerras e suas ideologias furadas, cirandas, faces da roleta viva onde giram mil caras. Aqueles óculos ouviram atentos na taverna, os risos e promessas das bruxas bêbadas e o caderno marrom, apoiado no cimento frio, as lentes conspiraram sobre amor perdido (ou amor achado?) e depois vislumbram taciturnos o mais maldito dos poetas morrendo por tédio da vida, ou por loucura, e a flor de Liz com seu cigarro que queimou para sempre nos olhos que se fecharam para a luz... e depois claricearam todas as coisas.

Os óculos viram Dean e Sal aflitas, embucetadas no pátio dos vagabundos a se perguntarem sobre o passado de uns óculos achados (ou perdidos?)

...e viram a dor líquida da menina que não sabia chorar de alegria...










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À Jana.