31.3.09

Apenas Mais Um Causo do Sertão

Dona Marinha foi espiar a janela com aqueles peitos que eram os maiores do mundo. Queria era contar causo de defunto. época de quaresma não era bom pra isso, bastava a noite vir bisbilhotar o telhado que um medo de nãoseioquê invadia a casa. Ainda mais agora que a casa tava cheia de moças com os hormônios borbulhando e rapazes, todos ruins para casar. Para a neta, ela fazia gosto de um apenas, o bizneto de Seu Canote, lá do chapadão. Seu pai era rapaz bom e entendia de roça, foi criado perto da nascente e desde criança era levado. Mas menino pra ficar bom tem mesmo que ser ativo e curioso sobre tudo. Aquele era! Danava a procurar gias na nascente, vivia se gabando que já tinha pegado mais de 60.Comadre Josefrina é que ralhava. Cheia de supertição aquela velha, gostava de dar palpite em tudo. Deus o livre! Um dia desceu o chapadão numa mula velha só para reclamar com Seu Canote, um velho de pele vermelha grossa e barba farta. Foi lá resmungar que tirar gia da nascente ia acabar secando a água. Seu Canote se riu naquela risada rouca: Hihihi, deixa o menino máde Zefrina, essa terra tem água por demais! Dona zefrina montou a mula velha e foi se embora, retada e praguejando. E não é que depois depois do estio as terras nunca mais ficaram boas? A água foi raleando. Mas a fazenda de seu Canote cresceu, só deus sabe como. Dizem que a tal de tecnologia é que deu jeito. Comadre Zefrina ficou viúva pouco tempo depois, plantava maxixe, milho e abóbora cascuda. Tudo pegou doença e morreu. Ficou na miséria, suas duas moças foram embora para a cidade e nunca mais deram notícia. Dizem que ficou pinel depois, virou bruxa, feiticeira, com os cabelos brancos dando pela cintura. E depois morreu sozinha e secou dentro de casa, nem funeral teve.A casinha está ainda lá em riba da serra. Ninguém foi lá, mas também a velha não deu sossego. Na lua cheia a meninada e até gente grande ficava alerta. Era ouvir coachar de gia e barulho de mula manca, podia saber! Morria menino e gente grande, morria velho ou quem quer que estivesse na reta da bruxa amargurada!
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E naquela noite Dona Marinha se recordou e contou todos esses casos na sala, depois da janta.Veio com isso na cabeça no caminho da missa de quaresma, andando a passos largos com suas pernocas gordas pela praça da igreja.Todo mundo cumprimentava e queria saber como andava o povo da cidade. Ela contava vantagem que estava feliz demais com a visita dos netos,mas a verdade é que estava doida pra semana santa passar logo. Veio rezando o terço, rodando as bolotas de cera e pensando num plano diabólico; Queria fazer medo. Era de levadice de velha mesmo! Lembrava daquelas noites em que dormia suando gelo debaixo da coberta com os irmãos por causa dos casos de Seu tinoco e Comadre Zefrina. Onde já se viu! essas moças de cidade não sabem nem matar frango! Quando vêem os olhinhos pidões agonizar já correm. Até demora mais de morrer o bichinho.,fica agonizando por causa do coração piedoso das moças; Piedoso nada! Lamuriava em pensamentos a Dona Marina enquanto limpava a cloaca defunta e fria do frango recém esguelado, frescura mesmo! Esse povo de cidade quer achar tudo pronto.

Dona Marinha estava inquieta e tinha um nó nas tripas, andava da cozinha para a sala, atravessava o corredor e sentia uma estranheza na sua própria casa. Enxergava os rapazes feito bonecas de porcelana sentadinhas no sofá com seus olhos inertes. Não brilhavam os olhos quando viam terra, nem vaca parida, nem bezerro mamando, nem pé de fruta crescendo nem nada. Gostavam mesmo era do tal do computador. O que será que haveria de ter de tão bom naquela caixinha brilhante e barulhenta? Coisa boa é que não era! Rapaz bacana de casar era mesmo o Bizneto de Seu Canote. Tinha ido estudar veterinária na cidade e andava com chapelão que capengava, lembrava até o finado Tinheiro quando era vivo. Bonito e viçoso que só! Ela disse às netas, vocês precisam de conhecer o Luizinho! Mas que nada. Ninguém dava ouvidos à velha. Ela se sentia uma relíquia daqueles matos, guardando estórias e passado que nunca se iam. Desde que Tinheiro havia batido as botas ela tinha se tornado sozinha, naquela casa, falando com visinhas e com os telhados, chorando de saudades dos tempos antigos, namoro de mão, vestido de renda, respeito com os mais velhos, cortejo e benção. Era tomada de um dor no peito quando pensava que aquilo tudo, o barulho bom dos bichos tilintrando na noite havia mesmo passado e ela... Ah ela era uma velha e todos aguardavam para que morresse já que ela não cabia no mais nesse mundo cheio de metais e coisas que se resolvem sozinhas . Dona marina estava triste por dentro e não sabia parar ou dizer, com aquela a casa pinhada de visitas, o jeito mesmo era continuar ralando a mandioca com a força dos braços, suando no baforão do fogão à lenha, porque a noite chega e há de se comer!

Após o jantar todos se aquietaram na sala, foi quando Dona Marinha começou então a contar aquele causo, vagarosamente, detalhe por detalhe, até disse que mostrava a casa de comadre Zefrina. Todos ouviram embasbacados e alguém até tentou fazer piadinhas a respeito. Mas as noites de quaresma e lua cheia naquelas bandas não falhavam. Deu a hora de dormir e moçoilada toda já caçou jeito de dividir cama, os rapazes já não queriam ir ao banheiro sozinhos. O tempo inteiro alguém se estremecia pensando ter ouvido barulho de mula manca, canto de gia na nascente. E todos, por uma noite que fosse, mergulharam no sertão que não saia nunca de Dona Marinha.

E naquela noite Dona Marinha dormiu profunda e serena, com a sensação de dever cumprido. Sonhou com o canto dos matos, sonhou com as sereias velhas dos rios, segurou os cabelos cinzas de comadre Zefrina, viu os anjos dançando todos nuinhos dentro das núvens. Ouviu o barulho do cachorrinho pintado que alegrava a sua infância, deu-lhe as mãos e atravessou o rio, as florestas, e os campos de algodão do cerrado. Saltitou por entre os verdes matagais que perfumavam as noites reluzidas de cristais que a enfeitavam de saudades . Depois sentiu o corpo molhando debaixo do orvalho sereno que devia ser as lágrimas da virgem Maria e estava tão feliz, que uma escuridão a invadiu por completo.

E naquela noite em que todos provaram dos mistérios do passado de dona marinha, é que ela suspirou. e nunca mais acordou

e enfim viveu para sempre nas noites do sertão...





-Para Dona Marilda, a contadora de causos!


(nika, sertaneja, louca e beat ;*)

25.3.09

Eros, dores e Isadorias



Ela chegou pisando a pés descalços a camursa anil macia, tinha os cabelos ruivos soltos num maleixo sensual raro, os lábios especialmente róseos, entreabertos e o corpo nu.A casa era estranha, silenciosa e desconhecida. Como eles teriam ido parar ali? Tudo era vago e não objetivo, como num sonho. Se era tarde, ou noite, eles não sabiam porque as janelas estavam cerradas. Ela era setentrional ou boreal ele não sabia, porque naqueles dias nada mais fazia sentido a não ser a vontade. Antes tudo era verborragia, raciocinio, mentira e palavreado, e agora que estavam nus, todos esses acessórios já não se recombinavam a fim de produzierem nenhum tipo de ordem lexical.
Ele a fitava de longe, em sua nudez pálida e já não procurava entendê-la. porque a verdade dela era uma asa de borboleta furta-cor, mudando a cada segundo. Ela por sua vez, já não tentava satisfazê-lo porque nos olhos dele havia uma sombra, que se aconchegava mais facilmente ao palácio da angústia. Havia naquele homem um prazer na insatisfação, um gozo em ser movido a dúvidas, e aquela mulher era puro mistério de bruxas, fantásmas, mares, ventanias, entidades e terreiros. Eles se imantavam num tropismo louco pelo sombrio, pelas coisas tristes e ocultas. e assim, nus, é que eles se sabiam por completo.

Ele engoliu-a com os olhos algumas vezes, tinha um cigarro na mão direita e um esquerdo pensamento: maldita! Ela se gracejava nua, se movia, e quase dançava em distraídos apelos femininos. Ele fitava ereto e praguejava numa prece aos avessos, num ritual de excitação a que ele se submetia. Maldita! Ela percebia tudo por detrás das pupilas cautas e sorria, movendo alguns poucos músculos da boca farta , invocava-o com os cílios e o possuia com seu olhar bruxo, e como era bruxo, bacante e malicioso e puro, sem querer. Porque eles sabiam bem que não há nada tão puro quanto um desejo selvagem cilindrando-se como uma gota de orvalho, aviltando-se perene, segundo após segundo, milimetricamente, para enfim explodir no ar.

Ele pousou os dedos naquela boca úmida de pintanga, e o seu sorriso mudava-se como um mosaico sensual de escamas de serpente. Ela molhou-lhe o dedo médio na saliva quente e fitava-lhe estranhamente os olhos enquanto cobria com a língua de rio, o dedo de terra e ferrugem daquele homem. Maldita! ele murmurava por dentro enquanto era tomado por uma fúria de macho que lhe agitava os músculos todos. Ele tomou-a forte pelos cabelos e engoliu os seus seios cáusticos no chão camúrseo do quarto frio. Ela se atrelava e se esforçava, mas deixava escapar uns soluços de de gozo contrito. E então ele possuiu aquela mulher que era toda uma ventania vindo de alguma núvem impetuosa, e ela conduzia atrevida, cavalgando a floresta mística e úmida dos corpos, oferecendo a sua noite triste de mulher para ser penetrada com força, por um cavaleiro tétrico em sua armadura de desejo.

A tempestade prosseguiu aos raios, relâmpagos e ventos impetuosos e sórdidos, atiçando a cavalaria dos espíritos, arrebatando tudo o que está passível de fazer sentido num ciclone não arrebatável, naquele quarto escuro, esconderijo das mentes sombrias e eles, suados e cúmplices e passivos do crime dos que se amam, gozaram com a cor sanguínea de todos os túmulos nos olhos

e depois que a claridade fúnebre do prazer invadiu o quarto eles estavam vivos de novo... homem e mulher.


(para Isa- que bem entende de amor, porque o amor é não entender)

16.3.09

Mas ainda é março


Eu sei, ainda é março!
Águas que rolam e bossas novas à parte, hoje minha homenagem é ao fogo de abril. Aliás, acho o outono a estação mais linda, romântica e vibrante. Outono é uma estação para quem ama um banco no meio do nada e um pouco de melancolia pra fazer a gente gostar dos fragmentos de lembranças. E é mágico como tudo acontece quando o verão se vai e o peito fica quieto.. O que será de nós em abril?
Um soneto e um cigarro, um casal de velhinhos sorri um sorriso doce e decente para quem ainda tem muito o que descobrir, e o vento, malandro e bonito como é, sai empurrando as folhas, recolhendo os planos secos e fatigados e o amarelo sol que se põe a incinerar em chama ardente tudo o que já devia ter passado até que o inverno chegue em dó maior e depois também adormeça no planeta que gira em torno de um astro amarelo e outonal. E na vida, tudo é mesmo circular, as estações, as paixões, os desejos. Tudo volta exatamente para os braços de onde nasceu. até as folhas um dia adormecem de novo aconchegadas ao seio misterioso da natureza.
Mas no peito uma pergunta ainda suspirava baixinho: o que será de nós em abril?
Na primavera é que as flores se abrem e fica um perfume e uma saudade. Pura saudade de abril. Na minha vida sempre foi assim, esse mês cerceando o limite onde nasce alguma nova e avassaladora paixão.
Mas a coisa toda começou antes mesmo da aurora de ontem, quando eu tentava dormir com essa minha mente que mais parece uma indústria de pensamentos sofisticados, vendidos a preço barato. O sol já queria se levantar e eu não conseguia sequer fechar os olhos! Não tinha porquês aquilo tudo, meu coração palpitava e as pupilas irrequietas rastejavam por um pouco de luz ou beleza em plena madrugada. E eu acabei sonhando sonhos de outros amantes, estive em outros corpos sentindo estranhos perfumes. Seriam essas as grutas outonais dos sonhos?
Não sei... sei que ontem eu quis ser mulher de novo, ser vermelha nos olhos, na boca, quis ser segurada firme por grossas mãos. Onde moram essas mãos além da luz rubra que penetra a paisagem amarela dos meus sonhos?
Ah como eu queria ser sensível de novo, ser pequena, ser bailarina e ser amada...
Por isso hoje fica aqui hoje um poema, um tango e um sopro do vento e neles o desejo de uma grande paixão. quem sabe os anjos dessa vez sintam piedade e recolham essa prece. Quem sabe eles enfim esqueçam meus pecados, esqueçam que amei demais sem ter musa nem amado!

quem sabe tudo mude no fogo transparente que dá na gente
no mês de abril!



acho digno!

(niks)

abril


Oh amor de noite castelhana

Do teu corpo no meu seio

Teus olhos no meu beijo

E os pés rasgando circunspectos

O chão lânguido de Habanera


E no céu a lua de penosos acasos

Gemia compassos de dois por quatro

E já cavalgavam mil cavalos

No íntimo de quem me queira


As mãos pousando a boca branda

E a boca mordendo árduos os receios

E os receios engolindo líquidos olhos

E os olhos sorvendo pérfidos desejos






E seguiu-se o baile do coração assassino

Piruetando sob o acaso desatino

Que já na amargura se reclina

Mas na candura se devaneia


Na lua espanhola a violeteira fina

Girou as mãos delgadas do fado

Recuou sôfrega , inclinou-se trépida

Se lançou cega e pouco mais partiu


Mas quando no peito se instalou o alvoroço

As mãos de março ganharam o meu pescoço

Meu regaço mole alcançou teu rosto

E o compasso de novo se abril