26.11.08

Mentira e 2 xícaras de açúcar


Não lembro bem quando foi que eu comecei a dominar a arte de forjar histórias, mas sei que só pode ter sido no colégio de freiras em que estudei boa parte da minha infância e aprendi a classificar e colocar em prática alguns primeiros e inocentes pecados capitais. Ora, toda criança que se preza aprende a mentir cedo, uma mentirinha boba aqui, outra falsidadezinha ali, mas forjar perfeitamente uma história é um dom, e uma regalia da qual poucos sabem desfrutar. Mentir é um prazer deleitoso como sentir o doce néctar de um bolo imaginário, imaginar todas as sensações, engolir, salivar. Ah, como é saborosa e doce a mentira! É como viver mentalmente uma realidade inventada, se esconder por alguns instantes no jardim do desejo, e nele chorar, sorrir, se emocionar. Puta merda, por que diabos a mentira tem de ser tão interessante e renovadora?
A minha primeira professora na “escola das inocentes histórias forjadas” foi uma coleguinha da segunda série do Colégio Imaculada Conceição. O nome dela era Otília, eu me lembro bem. Era magra, escorrida e estranhamente extrovertida. Falava, falava e zunia histórias nos meus ouvidos todos os dias. Era quase um ritual, me sentar nas escadas com a minha saia azul marinho grapeada, camiseta branca combinando com a meia soquete três quartos e ouvir a mentirosa mirim desabafar, com toda a angústia de uma criança sem aventuras reais. Era tão maravilhoso e natural que eu, mesmo sabendo que todas aquelas histórias extravagantes pouco nadavam no mar da realidade pálida da vida, continuava ali, a ouvir, sorrir com ela e às vezes até fazer perguntas, imaginando como seria linda a fada com quem ela conversava todas as noites, ou a baleia com quem ela dividiu o mesmo navio numa cruzeiro milhonário pelas ilhas do caribe. E Como era gostoso o pecado inocente de permanecer ali, nos degraus da escada, com minhas meias até o joelho, observando com olhos brilhantes a maneira com que a narradora se movia, levantando-se ávida, dando pequenos saltos, produzindo sons com os lábios e arquitetando finais comoventes numa uma maestria descomunal. Ali, naquela escada da escola, na hora do recreio é que eu experimentava uma das melhores sensações da infância: a liberdade de poder criar. Eu mastigava calmamente meu sanduíche e às vezes fechava os olhos, cúmplice secreta e satisfeita de todo embuste magnífíco clandestino que uma boa mentira possui. Como poderia eu refutar?
E Quando o relógio apontava 5 horas eu descia rapidamente as escadas com uma mochila sambando sob as costas, acompanhando o ritmo dos meus pulos, a vida transcorria-se normalmente, jantar sob a mesa, perguntas e afetos paternos, e a noite chegando deslumbrante, com cheiro de infância colorindo a janela. E num estalo de tempo eu já tinha de ir dormir, na doce obrigação infantil que é o sono. Só então eu me punha a pensar sobre a minha vidinha escolar, cadernos, matérias, recreios, lápis de cor, tabuadas. Mas eram apenas as histórias extraordinárias da Otília é que me faziam sonhar...

E até hoje é assim, embora a criança sonhadora tenha dado lugar à jovem dúbia, estabanada e claro, meio perdida, tenho que confessar que ainda aprecio o sabor de uma boa mentira, seja na ficção literária, me levando por caminhos e me proporcionando gozos os quais a realidade jamais poderia forjar, porque é triste o tédio de todas as coisas e obrigações... É triste a solidão das maçanetas imóveis e da água correndo molhada e incolor pelo meu corpo cansado de um dia cheio de compromissos. Hoje eu me sento nessa cadeira e busco um pouco de ilusões confeitadas na tela brilhante de um computador, e encontro conforto nas lembranças da infância, porque o mais triste de tudo deve ser viver apenas da mobília sem graça da realidade. E na minha receita pra felicidade eu incluiria sem medo nenhum 1 colher de mentira e 2 xícaras de açúcar, porque como Lispector eu ainda preciso uma doce verdade inventada.

By Nika

6 comentários:

Michelle disse...

Seu post me fez pensar que toda arte é uma forma de mentira. Por mais verossilhança que haja, é uma verdade "melhorada ou piorada", logo, uma mentira.
Se até nossa válvula de escape é formada por mentiras, quem dirá a realidade?

Adorando aqui...
:)

:***

Michelle disse...
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Michelle disse...
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Michelle disse...
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Jay disse...

As palavras doce/amargas da mentira são arroubos de sorriso e um híbrido de todos os outros sentimentos.
Adoro, desde já , Otília e suas histórias...

Por um momento estive novamente em 1990.

=*

Pedro disse...

MENTE NOS MEUS PEITO!!!!